Vida nova no esporte

Atletas inspiram e dirigem projetos que educam, incluem e fazem a diferença para reduzir desigualdades

 

por Fernando Victorino

Quando alcançou a marca de mil gols, Pelé fez um discurso histórico no gramado do Maracanã: “Neste momento em que toda a Terra está com a atenção voltada para mim, peço que todas as pessoas do mundo, principalmente do Brasil, tenham o maior carinho com os pobres, principalmente as crianças. Pensem no Natal dos pobres, pensem nas criancinhas”, pediu.

Foi chamado de demagogo em 1969 e pelos anos seguintes. Na autobiografia Pelé: Uma Vida em Imagens, explicou que a frase foi despertada pela lembrança de ter visto dois meninos tentando roubar carros na cidade de Santos. Comentei sobre esse episódio com um companheiro de time, sobre a dificuldade de se crescer e educar no Brasil, escreveu.

O cenário brasileiro mudou pouco em mais de cinco décadas, com picos de crescimento econômico e de avanços sociais. No Brasil de hoje, solapado pela crise financeira e pela covid-19, carências parecidas com essas observadas pelo Rei do Futebol ainda atingem crianças e jovens. Em alguns casos, o quadro só não é pior graças a iniciativas de atletas que enxergam no esporte o poder da transformação.

Presidente do Instituto Esporte e Educação (IEE), a medalhista olímpica de vôlei Ana Moser lidera há 21 anos o projeto que alia a prática esportiva ao exercício da cidadania crítica e reflexiva. “O esporte educacional, como a gente entende, é regido por cinco princípios: ele tem de incluir a todos e ainda trabalhar a diversidade, a construção coletiva, a autonomia e a educação integral, que engloba a todos’’, enumera.

O IEE mantém uma rede com cerca de 20 núcleos em parceria com escolas públicas, promovendo atividades no contraturno das aulas. Na prática, meninos e meninas participam de jogos tanto de modalidades tradicionais quanto das menos conhecidas. Em todos eles o professor atua como mediador dos processos, explica Ana. “Eles trabalham questões de saúde pessoal dentro do grupo, higiene, cuidado com o outro, cuidado consigo e com seu corpo, cuidado com os materiais, etc.”, cita.

Ana Moser, do Vôlei, presidente do Instituto Esporte e Educação; Raí, ex-jogador do futebol, co-fundador da Fundação Gol de Letra; Flávio Canto, do Judô, criador do Instituto Reação

Dos projetos executados pelo instituto, Ana destaca a Caravana do Esporte, em parceria com o Unicef. “Passamos 15 anos viajando o Brasil levando oficinas de esporte e de arte a municípios remotos, muitos sem acesso a essas atividades.” De cidades do interior a capitais brasileiras, a Caravana visitou ainda comunidades indígenas e quilombolas, tudo registrado em documentários exibidos pelo canal ESPN, outro parceiro do projeto.

Mantidas financeiramente por meio de doações e contribuições via Lei de Incentivo ao Esporte — instrumento de renúncia fiscal que permite a pessoas físicas e jurídicas investir percentual abatido do Imposto de Renda —, as atividades do IEE já atenderam a mais de 6 milhões de crianças desde 2001. De lá para cá, cerca de 45 mil professores da rede pública de ensino foram capacitados com metodologia desenvolvida dentro do instituto. Ensinamentos que nem mesmo a pandemia foi capaz de interromper. “Como é que a gente ia fazer treinamento presencial com 60, 70 pessoas, juntando três municípios num lugar só, viajando para cima e para baixo, voando semanalmente?”

A Caravana do Esporte visitou capitais, cidades do interior, comunidades indígenas e quilombolas, sempre levando a linguagem universal do esporte

Ana conta que, desde março do ano passado, as aulas de esporte migraram para o ambiente digital. Fevereiro marcou o início dos cursos pagos de formação continuada de educadores e gestores. “Isso abriu outra perspectiva quanto à maneira de trabalhar, um curso de ensino a distância (EAD). Começamos o processo de certificação para criar uma faculdade de educação física, de esporte educacional, do Instituto Esporte e Educação”, conta.

Na Fundação Gol de Letra, o plano de preparação de jovens para auxiliar e monitorar a prática de atividades esportivas em espaços comunitários virou política pública uma década atrás. Com duração de dois anos, o programa de aulas é dado por uma das Escolas Técnicas do Estado de São Paulo (ETECs), explica Raí, fundador da organização ao lado do ex-colega de clubes e Seleção Brasileira Leonardo. “Essa formação não existia como curso regular no Brasil. Apesar dos poucos recursos financeiros, a gente investiu em qualidade, com a ambição de se transformar em referência”, orgulha-se Raí.

“Damos assistência social às crianças de bairros com muitas carências. Também interagimos com a família, apoiamos a escola formal e realizamos atividades lúdicas, como oficinas de teatro e música”

Criada em 10 de dezembro de 1998, Dia Internacional dos Direitos Humanos, a Gol de Letra atua para que crianças e jovens tenham acesso a mais que uma bola. Quem pergunta se o espaço é uma escolinha de futebol recebe como resposta outras 15 modalidades esportivas ensinadas nas unidades de São Paulo e Rio de Janeiro. “Damos assistência social às crianças de bairros com muitas carências. Também interagimos com a família e realizamos trabalhos comunitários com atividades lúdicas, como oficinas de teatro, música e, claro, a escola formal”, diz.

Os anos na França como jogador do Paris Saint-Germain lapidaram em Raí o desejo de lutar por uma sociedade menos desigual. “Eu vivi a social-democracia no cotidiano. Minha filha mais nova estudava na escola pública do bairro onde também estudava a filha da pessoa que trabalhava na minha casa. Elas iam aos mesmos médicos. Para mim, isso é sinônimo de justiça social. Eu sempre sonhei em ter as mesmas oportunidades”.

Canadá é modelo para iniciativas

Ao tratar o esporte como ferramenta de integração social e promoção da saúde, o país inspira projetos no Brasil

No Canadá, a prática esportiva é parte da política de Estado, com estratégia de planejamento e financiamento de atividades por meio de iniciativas como o Programa de Apoio ao Esporte. Esse plano federal visa não só formar atletas de alto rendimento, como também aumentar a população ativa, ressalta Ana Moser, presidente do Instituto Esporte e Educação (IEE).

A medalhista olímpica vê no modelo canadense uma inspiração para projetos como o que ela fundou no Brasil. “O objetivo é a saúde da população, da infância à terceira idade — jovens e adultos tendo acesso a competições amadoras, sem o compromisso único com a performance, mas com objetivos de integração comunitária, ocupação de espaços públicos e segurança”, explica.

Criada em 2014, a Sport for Life (S4L) é uma organização sem fins lucrativos que atua no Canadá com o objetivo de criar parcerias entre os setores de esporte, educação, recreação e saúde, ao mesmo tempo em que se alinha à programação comunitária, seja no âmbito das províncias, seja nacionalmente. A S4L é mantida com recursos financeiros federais e de parceiros, como a província da Colúmbia Britânica, apoiadora do projeto de alfabetização física das crianças de suas escolas primárias.

Assim como o IEE de Ana Moser passou a oferecer sua metodologia a professores e educadores pela internet, a S4L mantém um catálogo de cursos variados que vão do treinamento em cultura indígena à conscientização cultural no esporte juvenil. A ONG dispõe ainda da plataforma digital PLAYbuilder, que contém quase dois mil planos de aula com exercícios e atividades físicas que podem ser adquiridos mediante a contratação de pacotes específicos.

Como Raí, a carreira esportiva fez Flávio Canto correr o mundo. Medalhista de bronze nos Jogos de Atenas, em 2004, o judoca viu, em países mais desenvolvidos, o que desejava para o Rio de Janeiro, “cidade doida em que você vê lacunas o tempo inteiro, cheia de divisões”. A fim de reduzir os abismos sociais do cartão-postal do Brasil, em 2000 ele criou o Instituto Reação. “Logo no início, tivemos um aluno que acabou assassinado. Quando ele foi enterrado com a camiseta do Reação no peito, vi a força daquilo que a gente fazia”, lembra.

Na Roda de Capoeira da Fundação Gol de Letras, esporte e música se encontram para divertir, promover a autoconfiança e celebrar a cultura

Além de contar com recursos da Lei de Incentivo ao Esporte e de patrocinadores, o Reação ocupa há 10 anos um terreno cedido pela prefeitura do Rio dentro da Rocinha, favela que, com cerca de 100 mil moradores, é a maior do Brasil. Lá e em outros polos do projeto são realizados programas educacionais, do empoderamento de mulheres ao ensino de profissões, com destaque para os treinos visando às competições de judô.

A combinação de inclusão e alto rendimento é a chave do sucesso do Reação, onde emergiu o talento de Rafaela Silva, a única judoca brasileira campeã mundial e ouro nas Olímpiadas

“No último ranking geral da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), o Reação terminou em primeiro, concorrendo com clubes grandes e tradicionais, como Pinheiros e Sogipa”. Flávio considera essa mescla entre inclusão e alto rendimento a chave do sucesso do instituto.

Do polo da Cidade de Deus, comunidade mundialmente conhecida graças ao filme de Fernando Meirelles, emergiu o talento de Rafaela Silva, ouro no Mundial de 2013 e na Olimpíada do Rio, três anos depois. “Em termos competitivos, é a maior atleta do Reação e a maior do país. Ela é a única brasileira da história campeã mundial e olímpica”, ressalta.

Afastada das competições por doping, Rafaela não estará nos Jogos de Tóquio. No Japão, o peso-pesado David Moura é a aposta do Reação para conquistar outra medalha. O judoca está treinando no mais novo polo, inaugurado em Cuiabá em 2019.

Na sede do Instututo Reação, as crianças encontram no esporte e nas atividades orientadas uma inspiração para criar seu próprio projeto de vida

O homem é do tamanho do seu sonho. Da delicadeza do verso atribuído a Fernando Pessoa vem a inspiração para o dia a dia de trabalho duro nos tatames na unidade da Rocinha. Sob a logomarca do instituto, a frase-título do poema do escritor português traduz o propósito da instituição. “É uma frase que remete a uma fábrica de gigantes. Vejo todo mundo ali como potência. Então você pega ali um público que tem todo um potencial subestimado, desconhecido, adormecido e você potencializa com a perspectiva de que todo mundo ali é gigante, porque todos somos, né? Basta acreditar e fazer por onde.”

Jogos Olímpicos com distanciamento

Na próxima Olimpíada só se ouvirá o som dos recordes sendo batidos: o público terá que torcer em silêncio e apenas aplaudir os atletas, sem gritar nem entoar hinos. 

“Não fui ao Rio para conhecer a cidade, mas para disputar medalhas, como agora”, diz Isaquias Queiroz, dono de duas pratas e um bronze nos Jogos de 2016. Ele segue treinando forte com o time brasileiro da canoagem para a Olimpíada de Tóquio, de 23 de julho a 8 de agosto. Mas Queiroz não poderá visitar cartões-postais do Japão: por causa da covid-19, o turismo está vetado a atletas e imprensa, segundo a cartilha desenvolvida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).

Pelas regras, a rotina se resumirá à vila olímpica (hotel, para jornalistas) e aos locais de competição. Em vez de transporte público, veículos oficiais farão os deslocamentos de esportistas e da mídia, que será monitorada por aplicativo, com relatórios indicando os locais onde se fará a cobertura. Testes de PCR na chegada e na saída e quarentena de 14 dias são exigências para começar a circular pelo país.

A presença de público nas arenas será discutida em abril, na revisão do plano. Se houver torcida, nada de gritos nem cânticos de incentivo, sob o risco de espalhar o vírus. “Aplauda”, recomenda a cartilha.

Em maio, começa em Toronto a seletiva para as últimas vagas da equipe canadense de natação. Seis atletas já estão garantidas, entre elas, Penny Oleksiak, destaque na Rio-2016 com quatro medalhas, incluindo o ouro nos 100 metros livres.

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